Do impressionante talento de Joaquin Phoenix, Coringa, com narrativa profundamente melancólica, extrai assustadora força poética. E o resultado não poderia mesmo ser outro depois que o diretor Todd Phillips idealizara como protagonista um dos maiores atores de sua geração. Na pele do icônico vilão, Phoenix, de maneira excruciante, dá vida a um filme devastadoramente marcante.
Um tipo específico de Coringa
Em Coringa é narrado o drama de um homem que se torna criminoso após ser constantemente desprezado e humilhado pela sociedade. Todavia, a premissa é apresentada, numa jogada de mestre, como trama de origem do arqui-inimigo do Batman. O artifício, por sua vez, é certeiro, sobretudo quando adaptações inspiradas na nona arte são a galinha dos ovos de ouro de Hollywood.
Sem o ardil mencionado, certamente a obra não impactaria parte significativa do público, simplesmente porque não a alcançaria. Coringa, portanto, não é exatamente a gênese do clássico personagem dos quadrinhos, nem uma de suas muitas jornadas criminosas rivalizando com sua tradicional nêmesis. Na verdade, o longa apresenta um tipo específico de Coringa sendo gerado, já que o definitivo nunca foi criado.
Baixo orçamento e Martin Scorsese
A tarefa de convencer os executivos da Warner a concederem carta branca ao ousado e ambicioso Coringa foi árdua. A visão de Todd Phillips implicaria um filme voltado à plateia adulta, o que poderia prejudicar uma arrecadação gorda aos cofres do estúdio. Então, para demover os engravatados de seus temores mercadológicos, o diretor acenou com um orçamento baixo, e foi bem-sucedido.
O envolvimento de Martin Scorsese foi outro fator utilizado para seduzir os chefões. O lendário diretor, embora não tenha participado ativamente do projeto, deu seu aval para que o longa fosse produzido por uma empresa parceira, além de autorizar Phillips a desenvolver o roteiro inspirado em clássicos do próprio Scorsese. Enquanto isso, o ator Bradley Cooper assumiu como produtor.
De Arthur Fleck a Coringa
Na trama de Coringa, Arthur Fleck (Phoenix) é um aspirante a comediante de sucesso que, por meio de um emprego como palhaço, se vira como pode para sustentar a si próprio e à mãe, que está doente. Entretanto, a despeito de seus esforços, além de viver em condições econômicas precárias, Arthur, numa ótima sacada de roteiro, sofre de um distúrbio neurológico que o faz gargalhar quando submetido a situações desconfortáveis. Dessa forma, ele se torna alvo constante da incompreensão e do desdém alheio, o que só intensifica sua total sensação de desamparo.
Depois de uma série de infortúnios, Arthur se vê envolvido nos assassinatos de três jovens numa estação de metrô. O evento é o estopim para uma verdadeira convulsão social. O descontrole emocional e a complexidade doentia de sua mente fazem emergir uma personalidade cruel e egocêntrica, que se torna o símbolo perverso do caos absoluto em Gotham City.
Inspirações scorsesianas e setentistas
Influenciado pelos protagonistas de Taxi Driver (1976) e O Rei da Comédia (1982), o perfil de Arthur Fleck emula tanto a inadequação social de Travis Bickle quanto o narcisismo inconsequente de Rupert Pupkin. Curiosamente, quando Arthur se vê diante de seu ídolo, o apresentador de TV Murray Franklin – interpretado por Robert De Niro (que vivera os personagens anteriormente mencionados) -, as duas facetas se fundem de maneira catártica, formando em definitivo a persona denominada Coringa.
Além disso, a obra, que apresenta uma estética e uma perspectiva narrativa alinhada com longas do final da década de 1970, apresenta referências a outros grandes clássicos do período. Entre eles estão: Laranja Mecânica (1971), Um Estranho no Ninho (1975), Um Dia de Cão (1975) e Rede de Intrigas (1976). Inclusive, até mesmo a escada que serve de símbolo para a jornada de Arthur Fleck até se tornar o Coringa, pode, por que não, servir de rima visual para o grande marco do terror O Exorcista (1973).
O caminho a ser trilhado
O fato de Coringa se passar quando Bruce Wayne é apenas uma criança exclui a figura de um justiceiro mascarado. Assim, o roteiro, de maneira eficaz, aproxima a obra do grande público sem necessariamente romper com a verossimilhança que a proposta inicial exige. Essa decisão, portanto, é o trunfo que faz a visão realista do diretor triunfar. Dessa forma, ao inserir referências pontuais à mitologia do Homem-Morcego, Phillips presta suas reverências à fonte sem, contudo, precisar se render a ela.
Um filme essencialmente provocador
Coringa, deve-se reconhecer, é um filme provocador, e, como tal, não exatamente propõe soluções para as questões que levanta – o que poderia soar até pedante, caso o fizesse. Por consequência, ao trazer à luz a jornada de um homem que rompe com os limites da sanidade para mergulhar fundo no universo da amoralidade, há, no que tange ao propósito de tal abordagem, uma tênue linha interpretativa entre duas proposições distintas: a exposição crua de uma realidade cujas mazelas sociais devem ser devidamente consideradas e debatidas, ou, em nome do suposto bem-estar geral, o desprezo total das leis que regem o sistema, com a implantação de uma luta de classes que promova uma verdadeira anomia. Nesse caso, se o espectador, de forma sensata, deixar-se levar pelo lirismo da obra, perceberá que, para a pergunta que o dilema em questão evoca, só há uma resposta.
Ridi Pagliacci
“Representar! …enquanto preso ao delírio” e “ria da dor que envenena teu coração” são os versos que, respectivamente, abrem e fecham a famosa ópera Pagliacci (Vesti La Giubba), composta pelo italiano Ruggero Leoncavallo em 1892. Nessa obra é narrado o infortúnio de um palhaço que se vê diante do total desalento. As referidas sentenças, no entanto, se aplicadas à infeliz vida de Arthur Fleck em Coringa, descrevem com perfeição sua dolorosa e solitária jornada.
A primeira serve de alusão aos constantes devaneios do protagonista, elemento esse que acrescenta uma interessante dubiedade quanto ao que é ou não real em sua vida. A fotografia imersiva de Lawrence Sher e a poderosa trilha sonora de Hildur Guðnadóttir, por sua vez, criam uma atmosfera carregada, que, auxiliada pela excelente montagem de Jeff Groth, contribuem para fazer o espectador se sentir parte desses delírios. Enquanto isso, a segunda dá à expressão “rir para não chorar” uma versão mais requintada, revelando o verdadeiro e profundo estado da alma de Arthur Fleck.
Joaquin Phoenix
Quando se pensa, de forma honesta, no quanto um ator pode elevar o nível de uma obra com seu talento, chega-se à conclusão de que Coringa, apesar do excelente aparato técnico – um exemplo disso é a Gotham que emula a Nova York oitentista, concebida a partir do primoroso trabalho em conjunto entre fotografia, figurino e direção de arte -, da interessante premissa e do bom elenco de apoio – nesse quesito, Robert De Niro e Frances Conroy merecem especial destaque – só atinge um patamar além do convencional graças a Joaquin Phoenix. O ator, que emagreceu 23 quilos para compor seu personagem, literalmente se entrega de corpo e alma para dar vida a Arthur Fleck. Por consequência, não há sequer um momento do longa que não conte com sua hipnotizante presença – e, portanto, não há cena que não valha a pena ser apreciada. Um verdadeiro feito!
“Coringa” é sobre falta de empatia
Decerto, Coringa é sobre o quanto frieza e indiferença ferem o indivíduo ao ponto deste ter seu monstro interior fartamente alimentado, até adquirir força o suficiente para não mais ser controlado. Ademais, a obra expõe a corrupção dos princípios éticos e dos valores morais, condição na qual figuras abjetas alcançam status de ídolos. Por fim, Coringa é sobre a perene falta de empatia, que, por sua vez, conduz a humanidade à beira do completo colapso social. Coringa, portanto, é um filme atemporal, e extremamente necessário.
Então, pegue sua pipoca e seu refrigerante, ajeite-se na poltrona, faça silêncio e… shhhhhh… um BOM FILME pra você!
Assista ao trailer (legendado em português)
CORINGA BR
Joker US
[Ficha Técnica]
Elenco: Joaquin Phoenix, Robert De Niro, Zazie Beetz, Frances Conroy, Hannah Gross, Marc Maron, Glenn Fleshler, Leigh Gill, Josh Pais, April Grace, Brian Tyree Henry, Sharon Washington, Sondra James, Ben Warheit, Murphy Guyer, Frank Wood, Shea Whigham, Bill Camp, Dante Pereira-Olson, Douglas Hodge, Carrie Louise Putrello, Brett Cullen | Direção: Todd Phillips | Ano de Lançamento: 2019 | Gêneros: Crime, Drama | Duração: 122 min. (2h02) ¹ | Classificação Indicativa: 16 Anos ² | País de Origem: Estados Unidos | Distribuição: Warner Bros. Discovery | Disponibilidade em Streaming ³: Max
¹ Tempo aproximado
² [ATENÇÃO!] Confirme as informações detalhadas sobre classificação indicativa na plataforma escolhida para assistir ao filme, série ou doc
³ O acesso ao conteúdo requer a assinatura do serviço sugerido
Para encaminhar uma mensagem ao blog, clique aqui.
Para ler outros textos, volte à página inicial ou acesse o menu lateral.
Descubra mais sobre BOM FILME!
Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.